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Freiria

Freiria

Outeiro de Polima e Polima

Nos últimos anos, Freiria revelou-se um manancial de informações arqueológicas, dado aí terem sido encontrados vestígios que remontam a um passado distante, desde o Neolítico até à alta Idade Média. Não obstante, foi durante o período romano que adquiriu maior relevância, com a instalação de uma importante “villa” de campo, na qual foi desenvolvido um considerável complexo agrícola.

“As ruínas desta casa de campo romana situam-se no vale entre as povoações de Outeiro e de Polima, na freguesia de S. Domingos de Rana, concelho de Cascais. À zona está ligada a lenda de Nossa Senhora da Conceição da Abóboda e por estas paragens identificou Vergílio Correia, em 1912, uma sepultura romana.

E foi exactamente a tentativa de localizar essa necrópole que nos proporcionou a identificação de inúmeros vestígios superficiais que denotavam a existência da importante villa.

Antecipando-nos à tentacular urbanização clandestina do local, aí procedemos a sondagens em 1985 e 1986, cujos resultados foram surpreendentes. Da casa senhorial, que supuséramos inteiramente destruída, foi descoberta a quase totalidade do pátio interior (peristilo), com os respectivos espelhos de água e o envolvente corredor provido de colunas, de que se encontraram diversas bases no seu local primitivo, assim como alguns capitéis (um deles, bem gracioso, em estilo coríntio).

Conseguimos identificar alguns dos compartimentos da casa que, a julgar pelo que já se pôs a descoberto, eram ricamente pavimentados a mosaico policromo decorado com motivos geométricos. Num dos corredores estava ainda um amontoado de matéria-prima para o fabrico da argamassa (opus signium) usada para os pavimentos.

Não têm sido abundantes, mas são verdadeiramente significativos, do ponto de vista histórico, os materiais encontrados pelos arqueólogos. Merecem referência especial:

  • a cerâmica de tipo campaniforme, característica do período eneolítico, o que prova o povoamento do local desde os tempos pré-históricos;
  • as duas pequenas e graciosas cabeças femininas em terracota;
  • o quadrante solar, que é uma das raras peças do género achadas no território nacional;
  • a ara com inscrição dedicada à divindade pré-romana Triborunnis por Tito Curiácio Rufino, certamente um dos proprietários da villa.

Os trabalhos arqueológicos, cientificamente conduzidos, puseram ainda a descoberto a zona termal com os seus tanques de água fria e de água quente, assim como um celeiro destinado à recolha e armazenagem dos cereais, nas melhores condições de ventilação e de protecção contra a humidade, que é o segundo até agora identificado na Península Ibérica.

As escavações trazem à luz do dia pequenos objectos, muros arruinados, cacos partidos, moedas comidas pelo verdete… – coisas insignificantes, enfim, para o homem comum. É com tais insignificâncias, porém, que através do estudo, miudamente, se entretece uma história milenar. Um património que, sendo parte integrante da nossa história, a todos pertence. Por conseguinte, a todos sem excepção compete zelar corajosamente pela sua preservação.”

ENCARNAÇÃO, José d’; CARDOSO, Guilherme, “A Villa Romana de Freiria”  

Mais uma campanha em Freiria

“Se, em 2000, a 16ª campanha de trabalhos na villa romana de Freiria teve por finalidade, para além de leves operações de limpeza, proceder através da equipa de arquitectos chefiada pelo Prof. Pedro Fialho à conclusão do levantamento gráfico das estruturas a descoberto, neste ano de 2001 toda a atenção se dirigiu para a re-escavação da casa senhorial.

Identificada, mediante sondagens pontuais, logo nas duas primeiras campanhas (1985 e 1986), a casa revelara-se do maior interesse patrimonial: parte das salas estariam pavimentadas a mosaico policromo; havia bases de coluna ainda no sítio original; recolhera-se gracioso lintel de porta e um capitel de estilo coríntio; o pátio interior estava circundado de ‘espelhos de água’, de caprichoso recorte, alimentados pelas goteiras, tendo, ao centro, espaço para o jardim… Para melhor se preservar esse património, optou-se por o voltarmos a tapar.

Este ano, porém, importava dar a conhecer aquilo de que já poucos se lembravam. Ficámos, assim, com uma ideia mais correcta de como se estruturava parte da casa senhorial. Em torno do pátio interior, dispunham-se, como é de norma, os vários compartimentos, estando os do lado norte e leste sobrelevados, pois que a eles se acedia por degraus.

Do ângulo nascente, junto à cozinha, arrancaria a escada para o primeiro andar e só agora, por esse facto, nos foi possível aventar a hipótese de estarmos perante uma casa de dois pisos. Ao lado da cozinha, separando-a, aliás, do lagar de azeite, um corredor que deverá ter servido para os despejos do dia-a-dia, porquanto daí se exumaram inúmeros fragmentos de cerâmica e muitos restos alimentares…

A entrada nobre da casa situava-se no ângulo sudoeste onde estava ampla soleira (182,5x54x8 cm), ladeada dos dois blocos quadrados onde assentariam as ombreiras da porta. Essa ala encontrava-se totalmente pavimentada a mosaico policromo de motivos geométricos.

Ciente da importância do conjunto, a Câmara Municipal de Cascais já encetou diligências para se proceder à vedação de toda a área arqueológica propriamente dita.

Burguesia culta

Confirma-se, desta sorte, que os proprietários da villa pertenciam à burguesia local, enriquecida com o negócio agro-pecuário, de que o amplo celeiro e o lagar de azeite são indícios mais do que evidentes.

Contudo, para além de ricos, eram também cultos e viviam requintadamente. E se o negotium lhes interessava sobremaneira, ao otium não voltariam as costas.

Assim, na sequência de outros achados idênticos, mas de menor qualidade, é de sublinhar que se encontraram, na campanha deste ano, duas invulgares pedras de jogo: uma, de osso, castanha-clara, extraordinariamente bem polida, com uma polegada de diâmetro; a outra, de pasta vítrea, láctea, mais achatada (altura = 0,5 cm, diâmetro = uma polegada), também denota um gosto requintado.

Entre os objectos de osso, achou-se o que, de momento, interpretamos como sendo a ponta de uma vareta de guarda-sol ou de sombrinha. De topo em lentilha, tem estrangulamento para o fio, seguindo-se o corpo com dois orifícios por onde passaria o fio de fixar a vareta. Está completa, mede meia polegada de comprimento e um terço de polegada de diâmetro exterior.

Falta em Cascais um museu onde esses materiais possam, enfim, ser mostrados ao público. É provável, porém, que, se o Plano de Pormenor que visa, como se sabe, adequado enquadramento urbanístico do sítio e que ora se encontra em apreciação chegar a ser aprovado, depressa se possa começar a pensar na musealização do sítio e na apresentação do muito que aí se tem encontrado, desde 1985.”

ENCARNAÇÃO, José d’; CARDOSO, Guilherme – “Mais uma campanha em Freiria”, “Notícias da Freguesia” n.º 25 de Setembro, Outubro e Novembro 2001, S. Domingos de Rana, p.10-11 

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Plano de Pormenor de Freiria: Inovação e Pioneirismo

“Quando, no número de Setembro de 1991 (p. 22-23) da revista Cascais 2000 Desporto, escrevíamos que um «complexo desportivo e cultural pode enquadrar as ruínas romanas» de Freiria, estávamos, evidentemente, a pensar que um conjunto arqueológico desta valia precisava para ser devidamente valorizado, dignificado e visitado de um enquadramento urbanístico singular.

Inovámos já então gizando para o leito do ribeiro, alimentado a partir da nascente cujo bonito enquadramento arquitectónico data de 1892, um espaço de lazer, atractivo para a população local. A regularização e alindamento desse leito e a criação de duas dezenas de hortas adjacentes seriam, desde logo, em nosso entender, algo sobre que nunca se pensara.

Estávamos a ser pioneiros porque, assim que o sítio foi declarado «imóvel de interesse público», por força do decreto-lei nº 29/90, de 17 de Julho, proclamámos que, para além das ruínas a preservar, e antes que novos lotes viessem a ser ocupados por moradias ou construções, havia que potenciar toda uma ‘cenografia’ que, respeitando os espaços classificados como RAN (Reserva Agrícola Nacional) e REN (Reserva Ecológica Nacional), assim como a beleza e as potencialidades das linhas de água, harmoniosamente conjugasse todos os elementos em presença.

O significado de um plano

Isso significava, obviamente, que em estreita colaboração com os serviços camarários encarregados de regularizar, de acordo com as directrizes superiores, as situações anómalas geradas pela construção dita «clandestina» ou, mais pomposamente, pelos AUGIs (Aglomerados Urbanos de Génese Ilegal) o espaço envolvente das ruínas teria forçosamente de ser reestruturado.

Isso compreendeu perfeitamente o presidente da autarquia, José Luís Judas, logo na primeira visita que fez ao sítio, determinando de imediato uma reunião com os responsáveis pelo Plano Director Municipal, então em fase de acabamento. E ficou decidido que a villa romana de Freiria e os seus mais próximos arredores haviam de ser alvo de um Plano de Pormenor e como tal ficou determinado no art. º 45º do regulamento do PDM, que consagra como propósitos a atingir: «A viabilização de um troço da variante à EM 584 e a operação de reabilitação da área, tendo como objectivos estratégicos a valorização cénica do conjunto arqueológico e o ordenamento das áreas urbanas de génese ilegal existentes na envolvência».

Pioneiros, de novo

Também neste domínio Cascais estava a ser pioneiro. De facto, na reunião camarária de 4 de Outubro de 1995 ficou deliberado que toda a zona envolvente da villa romana de Freiria fosse reconvertida através de Plano de Pormenor; e a urgência em a «salvaguardar, em termos urbanísticos e paisagísticos» expressamente reconhecida, por unanimidade, em reunião de 29 de Maio de 1996.

E, na verdade, só na proposta de lei apresentada à Assembleia da República em finais de 1998, no intuito de substituir a Lei 13/85, de 6 de Julho (Lei do Património Cultural Português), virá a prever-se como se lê no preâmbulo de «exposição de motivos» (p. 3) o reforço dos «instrumentos urbanísticos de protecção», além da adopção «de medidas especiais para a defesa da paisagem e do contexto dos monumentos, conjuntos e sítios» classificados. E, num dos articulados da proposta, viria a definir-se a obrigatoriedade de se gizar um plano de pormenor para todos os monumentos, conjuntos e sítios dignos de realce. A proposta governamental não foi aprovada, como se sabe.

Penosa caminhada

Foi longo, penoso e bem eriçado de espinhos o caminho que, por via da unânime deliberação camarária de 29 de Maio de 1996, a Associação Cultural de Cascais e, designadamente, a equipa pluridisciplinar chefiada pelo Arq. José Alves Bicho (que, de imediato, foi encarregada da elaboração do Plano) teve de percorrer.

Negociações difíceis e morosas com os proprietários dos terrenos em torno do sítio arqueológico e respectivas associações de moradores. Entraves de ordem vária, motivados inclusive pela natural indefinição de políticas, na medida em que se pisavam terrenos novos e era imensa a pressão imobiliária e enormes os interesses em jogo.

Urgia criar acessibilidades, prever espaços para a comunidade, numa zona em que, por via de regra, cada um pensava em si, na maior rendibilização do que era seu e argumentava com direitos adquiridos sem que houvesse base legal para os sustentar.

Por exemplo: Como poderemos reconhecer direitos a quem construiu a sua habitação sem autorização, em pleno leito de cheia de uma ribeira, em plena RAN e em plena REN? Que argumentos temos a seu favor a não ser o de considerar que essa família agiu de boa fé; que, afinal, aquela é a sua casa construída muito a custo, «com o suor do seu rosto», como sói dizer-se?

E aquela encosta que desce do Outeiro para o vale de Freiria e se prolonga depois, verdejante, até o ribeiro desembocar na ribeira da Laje tão íngreme e de tão bonitas vistas – iríamos propor que se urbanizasse e ali pudessem brotar arranha-céus ou moradias que fossem?

E permitiríamos que, mais uma vez, uma linha de água como é aquela que vem da Várzea de Polima, bordejada de zambujeiros (os símbolos da vegetação antiga…), continuasse a ser vazadouro de inerte pó de pedra de uma das serrações próximas?

Os «cascalenses» e o desânimo

Negociámos, negociámos, negociámos… Na convicção que sempre tivemos que tanto eram «cascalenses» os do litoral como os nados e criados (e muitos já são…) em bairros de génese ilegal do interior do concelho. Que tanto eram «cascalenses» os que, pelo Natal e nas férias, iam «à terra» de seus antepassados, na província, como os que, nados na Maternidade do Monte Estoril e criados junto ao mar, educados no João de Deus, pelo Natal e pelas férias vão agora para o apartamento do Algarve ou demandam a «província» para gozarem, à pressa, das delícias do «monte» ali recentemente adquirido…

Tentávamos negociar… A dado momento, largámos remos e velas, cansados das tempestades. E demos aos marinheiros ordem de regresso a casa. Que o barco ficasse à deriva e quem quisesse o afundasse de vez ou outrem pegasse no leme. Pegou José Luís Judas e fez questão que prosseguíssemos.

Em reunião de 20 de Dezembro último, deliberou o executivo municipal aceitar, por unanimidade, o processo referente ao Plano de Pormenor de Freiria e mandar proceder à normal tramitação em circunstâncias semelhantes.

Foi tal aceitação aplaudida por muitos e contestada por alguns, designadamente por uma Fundação, solerte em aproveitar mais este excelente ensejo para se demarcar politicamente de José Luís Judas e do seu Executivo e, por extensão, da política governamental socialista. Lamentámos. Mas cada qual luta como quer, como lhe deixam ou como lhe dá gozo como nós, quando, moços pequenos, «reinávamos aos cow-boys»…

Até ser concretizado, outras batalhas se terão de vencer. Nós já lutámos o bastante. E o resultado não está nas nossas mãos. Está nas dos cascalenses: os que sempre tiveram «terra» e os que só agora a tentam conseguir ter.”

ENCARNAÇÃO, José d’; CARDOSO, Guilherme – “Plano de Pormenor de Freiria: Inovação e Pioneirismo”, “Notícias da Freguesia” n.º 22 de Janeiro, Fevereiro e Março 2001, S. Domingos de Rana, p.8-9 

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Aqui fabricava-se azeite

“Correr Ceca e Meca e olivais de Santarém” é adágio popular que reflecte quanto a zona do vale do Tejo era, outrora, fértil na produção de azeitona. Hoje, mercê das crescentes urbanizações e da adopção de outras culturas mais rendíveis, a oliveira vai desaparecendo da paisagem, porque é mais caro cuidar dela que deixá-la ao abandono.

Mas também do lado ocidental, na chamada «península de Lisboa», a olivicultura prosperava. Daí que os topónimos como Zambujal, Zambujeiro a indicar existência de oliveiras bravas em abundância persistam na região.

Foram os Romanos grandes produtores de azeite, até porque, além de apreciado alimento, o azeite servia de combustível para iluminação, de medicamento e era utilizado também na higiene para unções.

Temos, inclusive, notícia de que pelas bandas de Sevilha, nesses primeiros tempos da Cristandade, se notabilizou um certo olisiponense Marco Cássio Semproniano, «diffusor olearius», ou seja, negociante de azeite. Desta sorte, não admira que encontremos aqui, em quase todas as villae romanas, os restos do que, há dois mil anos atrás, foram importantes lagares. Isso acontece, por exemplo, em Freiria, onde os arqueólogos puseram a descoberto o que se pode considerar um dos mais completos lagares romanos identificados, até ao momento, no território português. (…)

Em Freiria, o local da seira está assinalado por um pavimento densamente compactado (…) e o azeite resultante da espremedura corria para os dois tanques anexos, bem isolados nas suas paredes interiores e exteriores. A concavidade que ambos apresentam demonstra a preocupação em tudo aproveitar desse «precioso líquido».

As consideráveis dimensões do lagar são indício de que como é, de resto, ainda hoje normal não serviria exclusivamente para os senhores da villa, mas também para todos os produtores dos arredores. A importância deste invulgar testemunho arqueológico já foi por diversas vezes internacionalmente salientada. (…)”

ENCARNAÇÃO, José d’; CARDOSO, Guilherme – “Ao tempo dos Romanos: aqui fabricava-se azeite”, “Notícias da Freguesia” n.º 18 de Março e Abril 2000, S. Domingos de Rana, p.14